Quem chega à noite ao Cemitério do Peixe na região do Alto Jequitinhonha, sertão de Minas Gerais, se espanta com a primeira visão do lugar. Do alto de uma estradinha de terra vê-se o vilarejo iluminado, com uma capela e um cemitério ao centro, cercado por 200 casinhas brancas de telhado baixo espalhadas por vielas de chão batido. Ao percorrê-las, porém, não se encontra vivalma. O silêncio é tal, que a única coisa que se ouve – além do vento nas folhas – é o som dos próprios passos. Quem se atreve a bater nas casas à procura de alguém pode ter um espanto ainda maior, vai encontrá-las vazias, de gente e de móveis, algumas com portas e janelas abertas. Se depois disso souber que a capela e o cemitério são dedicados a São Miguel e às Almas, na certa, ficará arrepiado.
Carlota de Oliveira Brandão, a dona Lotinha, e seu filho Zezinho, únicos moradores fixos e vivos do lugar, nos receberam naquela noite fria de Lua Cheia. Fomos instalados na casa em que ficam os padres quando vão rezar missa por lá. Lotinha tem 61 anos, todos vividos ali. Jamais quis deixar a terra onde nasceu, se casou, teve filhos, enviuvou e pretende findar seus dias. Até perder o marido, há 18 anos, ganhava a vida em um pequeno sítio na vizinhança do Peixe. Depois, mudou-se para uma casa construída dentro do arraial. Ela teve nove filhos – oito foram embora em busca de trabalho noutras paragens. Só ficou Zezinho, de 26 anos, que tem problemas de fala por conta de complicações no parto, e ajuda a mãe a cuidar das galinhas e da horta. Atualmente, Lotinha sobrevive prestando serviços domésticos em uma fazenda nas proximidades.
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Localizado em um dos extremos do município de Conceição do Mato Dentro, a cerca de 270 km de Belo Horizonte, Cemitério do Peixe lembra uma vila fantasma.
Mas isso não assusta dona Lotinha. “Aqui não tem alma perdida nem achada”, faz questão de falar, sem perder o humor. “Já me perguntaram se eu não vi morto por aqui. É claro que eu vi, uai! Eu moro do lado do cemitério, já vi muito enterro”, diz, antes de soltar uma risada.
Depois, mais séria, afirma: “Nunca tive medo de nada, nada, nada”, prolonga, convicta, a frase. Lotinha está enraizada no Peixe. Até onde sabe, seus tataravós já viviam naquela região e todos os seus antepassados, além do marido, estão sepultados no cemitério.
Durante 11 meses do ano, o povoado conta apenas com a presença de Lotinha, seu filho, seus nove cães, de moradores das redondezas e das visitas eventuais de parentes dos mortos enterrados ali. O contingente aumenta em duas celebrações religiosas: Dia de Finados, 2 de novembro, e na data dedicada ao padroeiro São Miguel, 29 de setembro. Mas é na festa centenária do Jubileu de São Miguel e das Almas, na semana de 15 de agosto, que a paz do Cemitério do Peixe é quebrada com a presença de cinco mil pessoas.
Há muitas histórias e causos misteriosos acerca do lugarejo, inclusive que ajudaram a batizá-lo. A mais conhecida data de meados do século 19. Soldados teriam morrido de intoxicação de peixe estragado, dando origem ao cemitério – daí o nome Cemitério do Peixe. De fato, existem ruínas de um “quartel”, nome dado pelos moradores da região, provável vestígio do antigo registro de Paraúna, espécie de posto alfandegário construído no século 18 e que fazia o controle de entrada e saída da Demarcação Diamantina, a área de mineração do Tejuco, atual cidade de Diamantina, que fica a 70 km dali.
Talvez por isso exista outra versão, relacionada aos diamantes, sobre o nome da localidade. Um escravo, conhecido por Peixe, teria fugido de seu dono levando a pedra valiosa. O português foi atrás e o encontrou morto com o diamante nas mãos, onde hoje está localizado o cemitério. Também há a história do missionário, apelidado Padre Peixe, que viajava a cavalo e ali adoeceu, morreu e foi sepultado. Todas as mortes – dos soldados, do escravo e do missionário – teriam ocorrido no fatídico dia 15 de agosto.
Há relatos de romarias e missas praticadas ali, nessa data, desde 1887. A devoção às almas, antiga tradição das Minas Gerais, encontrou local apropriado, já que os romeiros também passaram a enterrar parentes e a desejar ter ali sua morada final. A capela sob invocação de São Miguel – arcanjo defensor das almas do purgatório – foi erguida no final do século. Em 1912, o fazendeiro proprietário da área, Antonio Francisco Pinto, o Canequinho, resolveu apadrinhar a festa sagrada e doou as terras para as almas, deixando cemitério e capela sob responsabilidade dos padres redentoristas da cidade de Curvelo, localizada a 50 km dali.
Como as festividades duravam uma semana e os romeiros vinham de longe, erguiam-se ranchos e, depois, casinhas caiadas de branco, que até hoje são passadas de pais para filhos e ocupadas pelas famílias apenas durante os dias da festa. Assim foi constituído o vilarejo que nunca teve habitantes fixos – exceto dona Lotinha e Zezinho. Não há nenhuma atividade econômica relevante, que empregue muita gente por lá. Só pequenos sitiantes e fazendeiros nas redondezas que vivem do gado e de roçados. Ou seja, um lugarejo com poucas perspectivas. Mesmo só com dois moradores, a eletricidade funciona o ano todo.
Uma vez por ano, nas semanas que antecedem o jubileu, os romeiros e suas famílias vêm preparar as casas para o grande evento: limpam, cortam o mato, pintam paredes e até constroem novos cômodos para receber mais gente. É o caso de Belosina Pinto Ribeiro, 70 anos, que veio a pé com a família de Capitão Felizardo, vila vizinha do cemitério a cerca de 10 km. Em uma roda em volta da fogueira, ela conta que frequenta a festa desde criança e hoje traz marido, filhos e netos.
Mário José da Silva, o marido, 69 anos, operário que rodou o Brasil trabalhando na manutenção de estradas de ferro até se aposentar e se fixar novamente na região, acrescenta, sob a luz do fogo, mais histórias que “ouviu falar” sobre o Cemitério do Peixe: “Aqui era um antigo cemitério de escravos e muita gente vem pagar promessa, porque as almas dos escravos são milagrosas”. Belosina, aposentada, que a vida inteira trabalhou na roça, fica contrariada com “a falta de respeito às almas” durante o jubileu. “Aqui é um lugar de religião”, afirma. A filha, Simone, 41 anos, pequena sitiante em Capitão Felizardo, diz que “o forró é a coisa mais estranha por aqui, não combina. A gente vem para se lembrar dos mortos e rezar”.
Padre Mauro Carvalhais, responsável pelas festas religiosas do vilarejo desde 2004, também lamenta “a parte desordeira” do evento. “A festa foi crescendo e, infelizmente, a mentalidade hoje é outra. Muitos vão só para se divertir com os amigos e beber, com aqueles carros de som fazendo barulho.” O padre se refere ao funk e ao sertanejo tocados a todo vapor e que acabam com o sossego de qualquer boa alma.
Mas sagrado e profano sempre andaram juntos na festa. “Já se vendia muita cachaça naquela época”, conta Levindo Pinto de Oliveira Jr., o seu Vivindo, de 80 anos, comerciante e fazendeiro em Capitão Felizardo, referindo-se à sua infância, quando vinha à festa com os pais. Isso para quem se arriscava a comercializar o produto, apesar das proibições e condenações dos padres, o que era interpretado como praga. “O povo diz que quem ganha dinheiro na festa vendendo bebida acaba perdendo tudo. E aconteceu comigo. Eu era moço e comprei na festa uma mula, com sela nova e tudo e vim com ela carregando o dinheiro que consegui vendendo cachaça. Ela saltou comigo no caminho, arrebentou os arreios e eu perdi todo dinheiro na beira do rio”, conta, rindo da antiga desgraça.
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Muitas outras histórias, misturadas a crenças, são contadas à boca pequena. Conversamos com uma senhora que havia acabado de chegar para ajeitar a casinha mantida pela família. Ela tem mais de 60 anos e frequenta a festa do jubileu desde criança. Aceitou falar sobre uma história familiar com a condição de não ser identificada. De fala mansa, disse que, na ocasião do enterro de um parente no túmulo da família, tiveram de exumar o corpo de uma tia, enterrado há algum tempo. Ela afirma que encontraram o corpo “inteirinho”, sem sinais de decomposição. “É que ela foi santificada, era uma pessoa boa”, acredita. “Quando é assim, levam o corpo para Roma e a gente não tem mais notícia, que é para a família não ficar orgulhosa.” Mas outros corpos parecem não ter a mesma sorte. “Já tiraram corpo seco do cemitério. Se fica seco, seco, seco é porque a pessoa não foi boa em vida. O povo queimava corpo assim.”
Não se sabe ao certo quantos estão enterrados ali. Não há livro de registros nem coveiros. A própria família é responsável pelo sepultamento. Em geral, só quem tem algum parente lá ou é devoto das almas do Peixe deseja o lugar como destino derradeiro. Aos visitantes de alma sensível, uma mensagem na placa do cruzeiro, no meio do cemitério, pode parecer funesta. Já para outros, de alma mais aberta, soa como uma reflexão existencial: “Ó tu que vens a este cemitério medita um pouco nesta campa fria: eu fui na vida o que tu és agora, eu sou agora o que serás um dia“.
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